terça-feira, 30 de outubro de 2012

Dona Ana


Uma mulher, 85 anos e 3 estádios: Dona Ana chora o fim do Olímpico

Única torcedora do Grêmio numa família de colorados ia escondida à Baixada, viu a inauguração do Olímpico e agora sonha com a Arena


dona ana grêmio adeus, olímpico especial (Foto: Lucas Rizzatti/Globoesporte.com)Dona Ana, no Memorial do Olímpico
(Foto: Lucas Rizzatti/Globoesporte.com)
Sem cerimônia, Dona Ana arrasta uma cadeira e se acomoda com velocidade incomum para seus 85 anos. Meneia a cabeça - de cabelos brancos, sim, porém vistosos e cheios de vida - e admira o quadro a sua direita. Emenda, convicta:
- É engraçado, né... desde que ele colocou a barba, nunca mais a tirou.
Dona Ana poderia estar falando de seu saudoso marido ou, quem sabe, do único filho. Mas tanta familiaridade foi empenhada para comentar o extenso painel com a figura de Hugo De León, zagueiro e capitão do Grêmio nas conquistas da Libertadores e do Mundial de 1983. Dona Ana também poderia estar em casa tamanha informalidade. Mas, naquela quente tarde de outubro, a convite do GLOBOESPORTE.COM, fincava seus pés miúdos no Memorial Herminio Bittencourt, no Olímpico. Mas não soa errado dizer que estava em casa, sim, e rodeada de "parentes". Afinal,numa espécie de versão feminina do ex-meia Milton Kuelle, é uma torcedora de três estádios. Deu adeus à Baixada, recebeu o Olímpico de braços abertos e agora alimenta a expectativa de testemunhar a inauguração da Arena, no dia 8 de dezembro.
Com a despedida da atual casa do Grêmio cada vez mais perto (será no dia 2 de dezembro, contra o Inter), você lerá nas linhas a seguir uma história de devoção a um clube de futebol. Uma adolescente de 17 anos que, na remota década de 1940, chegava a sair escondida da família, toda colorada, para ver o seu time jogar. Uma dedicada esposa que arrastava o marido para o campo e até passara mal na arquibancada. E uma carismática avó que até hoje não deixa de acompanhar os jogos. Mais pela TV. E sozinha na sala. Ai de quem se atreva a incomodar. Por ora contidas e muitas vezes inevitáveis, as lágrimas, saldo da nostálgica caminhada pelos corredores do estádio, comprovam: para Ana Aurora Ilha Linck, torcer para o Grêmio é coisa séria. E para sempre. 

Antes das alianças, a pergunta: "Gremista ou colorada?"
Desde de 19 de setembro, data da inauguração do Olímpico, até dezembro, na abertura da Arena, o GLOBOESPORTE.COM traz matérias especiais sobre a memória da atual casa tricolor
 
A paixão pelo Grêmio começou longe da Baixada e do Olímpico. Longe de Porto Alegre, a quase 200 km da capital, na pequena Cachoeira do Sul, no centro do estado. Um sentimento repassado de mulher para mulher. A pequena Ana, com seus seis anos, se encantou pelo boton do Grêmio que a tia Joaquina usava sobre a roupa. Queria saber de onde viera aquele símbolo que, mais tarde, a acompanharia pelo resto da vida.
- Eu nem sabia o que era futebol. Vem com a gente, não tem explicação - recorda Ana.
Tampouco teria lógica Ana contrariar a história dos Ilha e se tornar gremista. A família inteira - tinha 14 irmãos - sempre fora colorada. O pai era Força e Luz, clube extinto em 2006, e o único que, às vezes, torcia um pouco pelo Grêmio por "pena" da filha "sozinha". Para escapulir das provocações em casa, saía de fininho do trabalho, uma farmácia encravada no centro de Porto Alegre, e ia para a Baixada às escondidas. 
A ousadia da garota de 16 anos ganhava ainda mais valor pelos tempos duros vividos pelo Grêmio. Não estava fácil amealhar vitórias diante de um Internacional recheado de craques. Os últimos anos da Baixada foram de dificuldades. Dona Ana se lembra bem:
Eu vi todos os títulos, estava em todas as partidas decisivas"
Dona Ana
- Naquela época, ninguém perguntava quanto foi o jogo, mas, sim, quantos gols o Larry e o Bodinho fizeram no Grêmio.
Em vez de desistir, dona Ana uniu forças. Assim pode ser encarado o seu casamento com Lauro Luiz Linck, de descendência alemã, assim como o seu Grêmio. A gremista isolada nunca mais ficaria só. Aos 25 anos, ganhou um amor para todos os momentos e um torcedor fiel para todos os jogos. Com seu marido, garante não ter faltado a uma partida nos primeiros 15 anos de Olímpico.
Embora muitas vezes Lauro fosse "arrastado" ao estádio pela empolgação da esposa, o marido passava longe de um torcedor desinteressado. Uma das primeiras perguntas que fizera a Ana foi sintomática: "gremista ou colorada?". A resposta, tão óbvia quanto fundamental, selou a vida do casal. Que se confunde com a do próprio clube.
- Eu vi todos os títulos, estava em todas as partidas decisivas - se orgulha Ana.
dona ana grêmio adeus, olímpico especial (Foto: Hector Werlang/Globoesporte.com)Dona Ana se emociona nas arquibancadas (Foto: Lucas Rizzatti/Globoesporte.com)
Comecemos, portanto, pelo fim. Pelo fim da Baixada, estádio que acolheu o Grêmio de 1904 a 1953, em frente ao Tiro Alemão e entre o Prado do Moinhos de Vento e o mato Mostardeiro. Dona Ana, então aos 26 anos, estava, como sempre desde 1952, ao lado do marido, no último Gre-Nal da velha casa. Como de costume naquela tortuosa época, o Inter se deu melhor: Jerônimo e Canhotinho marcaram os gols do 2 a 0.
Hoje protegidos por espessas lentes, os olhos de Dona Ana jamais esquecerão a avidez dos sócios gremistas em tentar levar uma recordação do estádio que seria apenas memória meses depois (em 12 de dezembro de 1953, um amistoso ainda fecharia oficialmente a Baixada. O Grêmio goleou o Guarani de Alegrete por 6 a 1).

- Eles queriam levar uma tábua, cada um queria levar um pedaço, começaram a bater para desmontar - conta.
Tardes a fio no Olímpico, com a turma do piquenique
Sócia do clube, ela não desmontou nenhum pavilhão. Pelo contrário. Preferiu esperar o novo estádio ficar pronto. Em 19 de setembro de 1954, lá estava Dona Ana, acomodada na área das sociais, a única coberta, para ver o Grêmio vencer o Nacional na partida inaugural. A cidade toda estava lá, relembra. Como boa torcedora, viu na abertura da nova casa uma chance de ouro de alfinetar o rival:
- Eles ficaram furiosos com o Olímpico, muito mais bonito do que os Eucaliptos. Os gremistas, finalmente, tinham do que se orgulhar. E, quando ergueram o Beira-Rio (em 1969), a gente chamava de 'boia cativa' (em alusão ao aterro do Lago Guaíba para a construção do estádio colorado).
A mudança da Baixada para o Olímpico uniu o útil ao agradável. O Grêmio ficou mais perto de Dona Ana. Os jogos se tornaram um evento. A turma toda do bairro Medianeira, várias famílias, por volta de 15 pessoas - todos colocavam em prática as palavras de Lupicínio Rodrigues no Hino do Grêmio. A pé, rumavam ao estádio, sempre atalhando pela Rua Coronel Neves, em direção a Carlos Barbosa. Em 10 minutos, já avistavam o gigante azul de puro concreto. Não raro, montavam verdadeiros piqueniques, indo para o campo já pela manhã, nos tempos em que as partidas preliminares dos aspirantes movimentavam a torcida durante todo o dia.
Mas as paredes tilintando de novas do Olímpico jamais foram completa novidade para Dona Ana. O marido trabalhava na Smov (secretaria municipal de Obras e Viação) e vivia envolto nas obras do estádio, iniciadas em 1951. Participativa, a comerciante dava os seus pulos na construção - local de que, depois de pronto, também não deixaria de visitar. Virou seu QG, numa época em que se tinha "poucas diversões", a própria conta.
O 'ataque dos sonhos' e o choro de Foguinho
dona ana grêmio adeus, olímpico especial (Foto: Lucas Rizzatti/Globoesporte.com)Dona Ana observa time que, em 1959, goleou o
Boca (Foto: Lucas Rizzatti/Globoesporte.com)
Da arquibancada do Olímpico, surge um solo duro, porém fértil. De onde, como que por geração espontânea, brotam histórias. Numa delas, Dona Ana por pouco não foi parar no hospital. O temido Grêmio da 'escola Foguinho', enfim, estava sendo batido em casa, em 1961. O gol do Flamengo, hoje Caxias, fez a torcedora fanática passar mal. Lesionado, fora de combate, Juarez, um dos maiores centroavantes da história do clube, viu o sofrimento da moça. Assim como ela, estava acomodado nas sociais do estádio assistindo à difícil partida. E, com sua voz de trovão, remediou o mal com esperança.
- Fique calma. No próximo jogo, eu me recupero e faço um gol - prometeu.
Aliás, vem do time que venceu 12 campeonatos gaúchos em 13 disputados as memórias mais frescas e tenras de Dona Ana. Sabe de cor o time que mais a marcou nessa era, chama o setor ofensivo de "ataque dos sonhos" (também pudera: Gessy, Juarez, Milton e Vieira) e tece comentários sobre os jogadores e o técnico como se falasse de filhos tamanha a cumplicidade.
- O Foguinho era gremista doente - lembra, apontando a foto de Oswaldo Rolla no memorial do clube.
Com seu estilo disciplinador e sotaque de "erres" carregados, Foguinho inventou o conceito de "futebol-força" no Rio Grande do Sul e, com um time montado a dedo, deu fim à supremacia colorada dos anos 1940. Antes, já havia se eternizado como meio-campo do Grêmio, de 1928 a 1942.
Mesmo com quatro títulos consecutivos, de 1956 a 1959, Foguinho deixou o clube. Embora austero, também mostrou capacidade de comoção. Tudo documentado pela história, mas também pelos olhos astutos de Dona Ana, que viu Foguinho chorar. Foi em 1961, logo depois de sair do Olímpico. Foguinho não aceitava a interferência insistente da direção na escalação da equipe e voltou ao Cruzeiro. Apesar de ter em mãos uma equipe mal das pernas, venceu, adivinhem, o próprio Grêmio em sua estreia, no feriado de 15 de novembro: 1 a 0, e palavras que em nada davam o sentimento da vitória: "Foi como se eu apunhalasse o meu próprio filho", declarou o técnico em entrevista de pós-jogo também registrada no livro "Os Dez Mais do Grêmio", de Marcelo Ferla. 
O semblante sisudo do treinador é apenas uma de tantas figuras de relevo nos quadros e painéis e que fazem Dona Ana voltar ao passado. Emotiva, não se esforça para conter o choro. Os olhos marejam diante das taças conquistadas. Como num transe, estaca diante da foto posada da delegação antes da viagem rumo a Buenos Aires, onde, em 1959, o Grêmio golearia o Boca Juniors por 4 a 1, os quatro gols de Gessy, que entrara em campo debilitado por uma rotunda noitada. Craque genioso, não gostava de falar em futebol, contava com a luxuosa admiração de Elis Regina e sustentava o preocupante apelido de Relâmpago - dada a quantidade de cigarros que acendia durante a noite, nas concentrações.
- O Foguinho vivia lhe dando broncas, era incrível - confirma Dona Ana, agora, mais do que torcedora, contagiada pelo zelo inerente das avós.
Garrincha, Pelé e o soco de Everaldo
Na sólida memória de Dona Ana, ainda moram atuações de gala de Garrincha, Didi, Djalma Santos, Nilton Santos e, claro, de Pelé, todos no gramado do Olímpico. Mas o Grêmio também concebeu um campeão mundial que não se desprega de sua mente. O lateral-esquerdo Everaldo, único gaúcho tricampeão em 1970, que fez parar Porto Alegre após o título no México. O motivo da existência da única estrela na bandeira gremista e um dos defensores mais disciplinados. Mas que, curiosamente, também ficou marcado por uma agressão.

Em 18 de outubro de 1972, em partida do Brasileiro, contra o Cruzeiro, Everaldo se inconformou com um pênalti duvidoso a favor dos mineiros e nocauteou o árbitro José Faville Neto. Nem ficou no campo para ouvir a ordem de expulsão. Acabou pegando um gancho de um ano, que seria atenuado meses depois. Conseguiu inclusive arregalar os olhos de uma concorrida tribuna de honra, que contava até com o então presidente Emili Garrastazu Médici. A torcida, no calor da partida, finalizada em 1 a 1, gostara da atitude intempestiva de seu ídolo. Afinal, fúria também combina com paixão.
- Comemoramos o soco como um gol - relembra Dona Ana, abrindo o sorriso de pura nostalgia.
Os craques daqueles tempos passaram, o futebol mudou. E Dona Ana também. A partir dos anos 1980, frequentou menos o estádio. Começou a notar mais violência por parte das então emergentes torcidas organizadas e menos respeito às mulheres. Por isso, escolhia com mais critério a partida a assistir. Futebol não permitia mais piqueniques nas arquibancadas, mas ainda emocionava. A inauguração do Olímpico Monumental, completamente reformulado, em 21 de junho de 1980, é um fiel exemplo.
- O estádio ficou lindo, maravilhoso - elogia, resgatando o 1 a 0 sobre o Vasco.
O fim da parceria, não do amor. Nem do gremismo
grêmio 1956 (Foto: Reprodução)Time de Foguinho, da retomada da hegemonia do RS,
em 1956, encantou Dona Ana (Foto: Reprodução)
O seu afastamento definitivo das incursões ao Olímpico se deu há cinco anos. Também pudera. Perdera o seu parceiro de vida e de futebol. Lauro Luiz Linck morrera numa quinta-feira, um dia depois de completar 80 anos. O esperava uma faixa feita pelos netos colorados, com todos eles vestidos de tricolor, numa concessão para lá de sincera e especial. Uma homenagem e tanto, que não encontrou o seu alvo. Pelo menos, fisicamente. As lágrimas voltam aos olhos de Dona Ana, que, contra a saudade, optou por repassar aos cunhados gremistas de São Leopoldo o que tinha de mais valioso de suas histórias com o Grêmio. Que, inevitavelmente, se misturam à do casal-torcedor.
Muito por isso, prefere o refúgio do lar em dias de jogos. Perdeu o hábito de ir ao Olímpico, mas não passa em branco quando a bola rola. É dia de Grêmio entrar em campo? É dia também de Dona Ana dar uma trégua na rotina de carinhos e mimos aos netos e aos oito bisnetos. E voltar a ser a solitária e combatente gremista da família Ilha. Prefere assistir sozinha aos jogos, para evitar a "corneta" caseira.
A última vez que havia ido ao campo, antes dessa tarde quente tarde de outubro a convite do GLOBOESPORTE.COM, havia sido em 11 de setembro de 2011. Na companhia da sobrinha, comemorou a vitória de 1 a 0 do Grêmio sobre o São Paulo. Pisar no concreto e admirar o gramado são rituais que ainda mexem com suas lembranças. Chega a apertar o dorso da mão contra a boca, agora num empreitada inútil contra a emoção. Dona Ana não quer ver o Olímpico ir abaixo.

- Estou com pena disso tudo. Me sinto angustiada - confessa.

Mesmo contrariada, acena em ir ao Olímpico em ao menos um dos quatro jogos que ainda restam em 2012. E, no dia 8 de outubro, pretende ir à Arena. Ainda está em busca do ingresso para o evento da inauguração, mas o olhar confiante revela que nada será obstáculo para quem já desafiou olhares enviesados e provocações de uma família inteira tingida de vermelho por amor a outro clube de futebol:

- Claro que quero ir, não deixo de ser gremista. Os homens passam, e o Grêmio fica. 
dona ana grêmio adeus, olímpico especial (Foto: Lucas Rizzatti/Globoesporte.com)No palco que viu crescer e virar Monumental, Dona Ana se emociona (Foto: Lucas Rizzatti/Globoesporte.com)

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